No dia 11 de outubro de 2012,
foram publicados o Decreto 7.824 e a Portaria Normativa Nº 18,
que regulamentaram a Lei Nº 12.711, popularizada como Lei de Cotas. Desde
então, universidades federais e instituições federais de educação profissional
e tecnológica (Institutos Federais, Cefet’s e Escolas Técnicas vinculadas a universidades) passaram a ter que reservar, no mínimo, 50% de suas vagas para
alunos oriundos de escolas públicas, resguardando, ainda, cotas para
pretos, pardos e indígenas e para candidatos com renda familiar bruta de até
1,5 salário-mínimo per capta.
Comunicação Social do IFRN |
O assunto é polêmico! De um lado,
defesas fervorosas e socialmente engajadas de quem acredita que as cotas combatem
e amenizam as distorções sociais, econômicas e culturais que as minorias (no nosso caso maioria!), historicamente, têm enfrentado. De outro, interpelações angustiadas
de quem argumenta que esse tipo reserva é sinal de protecionismo ou de “preconceito
invertido” e que limita o acesso universal às vagas para quem não preenche os
pré-requisitos das reservas.
Um fato: independente de uma ou
de outra posição, o Decreto já foi aprovado e universidades federais e
instituições federais de educação profissional terão que se adaptar e
implementar uma política afirmativa nacional que se adeque à legislação.
Embora se argumente que o projeto
tramitava há quatro anos no Congresso Nacional, pouco ou nenhum destaque político e midiático vinha
se dando a ele. De repente, o projeto de lei foi aprovado e, logo em
seguida, saiu o decreto que o regulamentou.
O governo teve e tem pressa! “Não
deu tempo” nem de ouvir as universidades e institutos federais, que, em sua
maioria, já possuíam, há anos, alguma política afirmativa, além de terem produzido
e acumulado conhecimento sobre o assunto.
Muitas instituições tiveram que
alterar editais e, consequentemente, adotar novas regras e datas para,
inclusive, os processos em andamento. No Rio Grande do Norte, foi assim com a
UFRN e com o IFRN. Este último, inclusive, que já reserva 50% de suas vagas em
cursos técnicos para alunos de escola pública desde 1994 e em cursos superiores
desde 2004, teve que lançar novas regras para um processo de ingresso que já
havia publicado, inclusive, seu resultado parcial.
Nesse cenário, o SISU, Sistema de
Seleção Unificada, processo de ingresso do Ministério da Educação que preenche
as vagas do ensino superior em todo país, também terá que se adaptar. No ato da
inscrição, segundo a Portaria Normativa Nº 21/1012-MEC, os candidatos terão que optar se concorrerão às vagas reservadas ou
às vagas gerais, não podendo concorrer nas duas formas.
O estranho é que qualquer vaga reservada em um
processo de ingresso discente pretende-se essencialmente como uma oportunidade a
mais de inclusão. Deve, portanto, ser mais uma oportunidade de acesso; não a
única. Logo, as vagas gerais de qualquer processo seletivo devem
poder ser preenchidas por qualquer candidato, pois estas se baseiam apenas na
avaliação do candidato, independente de seu perfil sócio-econômico,
étnico-racial e histórico escolar. Se são gerais, não podem ficar restritas aos
candidatos que não podem preencher as vagas reservadas; caso contrário, não
seriam vagas gerais. Seriam vagas para não cotistas!
Qual a lógica de um candidato que se declare preto e que sempre tenha
estudado em escola pública, com renda familiar inferior a 1,5 salário-mínimo,
com uma nota de 600 pontos não poder preencher uma vaga geral enquanto que um candidato
que sempre estudou em escola privada e que tem uma nota de 550 pontos pode
fazê-lo? Nenhuma!
Voltando à questão da reserva de
vagas para o ingresso em cursos técnicos e superiores de graduação, é quase consensual
essa necessidade para os candidatos de família de baixa renda e
para alunos de escola pública.
Afinal, vivemos num país que, em
detrimento dos inúmeros avanços sócio-econômicos dos últimos anos, ainda é
economicamente desigual, e tem, segundo dados do IBGE de 2011, 46% de sua
população em idade ativa vivendo com até dois salários-mínimos, enquanto apenas
cerca de 10% recebe de três a 10 salários-mínimos. Ainda de acordo com
tais dados, menos de 2% da população em idade ativa recebe mais de 10
salários-mínimos. Por isso, somos ainda o quarto pior país da América Latina no
quesito distribuição de renda, de acordo com ONU.
E essa desigualdade econômica
influencia muito o acesso à educação. De acordo com uma pesquisa também do IBGE, em 2009,
a fatia mais pobre da população acima de 25 anos possuía apenas de 4,5 anos de
estudos enquanto que a fatia mais rica na mesma faixa etária possuía mais que o
dobro, 10,4 anos. O estudo também apontou que apenas 32% da fatia de jovens mais
pobres entre 15 e 17 anos estava no Ensino Médio enquanto que quase 78% da fatia
dos jovens mais ricos, na mesma faixa etária, estava estudando nessa etapa do ciclo educacional.
Somando-se a esse panorama discrepante,
as escolas públicas de ensino fundamental e médio, frequentadas, em sua
maioria, pelos mais pobres, apresentam-se majoritariamente sucateadas, com
estruturas físicas precárias, currículos pouco atrativos, falta de professores e
educadores desmotivados com seus salários indignos.
Para piorar a situação, essa mesma
escola pública – não por culpa dela, mas pelo modelo societário em que vivemos
e por opção política de nossos governantes – não tem implementada uma política de
assistência estudantil, como a que se vê em universidades e institutos
federais.
Dessa forma, chegar até o fim do
percurso escolar torna-se muito mais difícil – às vezes, quase impossível –
para aqueles que querem estudar e não têm dinheiro para o transporte que o
conduziria até a escola; querem estudar e fazer suas atividades de casa depois
da aula, mas não conseguem por estar com fome, pois não têm almoço em suas
casas; querem estudar, mas não conseguem enxergar, pois não têm como comprar
óculos de grau; querem estudar, mas têm que trabalhar para garantir o pão que
lhe sustenta (sobre)vivo...
A mais importante crítica à cota por
renda familiar da nova legislação acaba ocorrendo pelo fato de esta ser aplicada, em todo o país, a
partir de um parâmetro único de renda - 1,5 salário-minimo per capta. Como se já vivêssemos em um país cuja renda é
distribuída homogeneamente, em que não há diferenças de riquezas e de poder
aquisitivo de uma região para outra, de uma capital para outra, de uma capital
para um município do interior!
Uma família de quatro pessoas que vive em Acari, interior do Rio Grande
do Norte, com uma renda familiar de R$3700,00 tem, por acaso, as mesmas
dificuldades que uma família com a mesma renda e quantidade de pessoas que vive
em Brasília, DF? Estão em pé de igualdade uma família com cinco pessoas que
sobrevive com uma renda familiar total de R$622,00 e uma família com cinco
pessoas que sobrevive com uma renda familiar per capta de R$622,00, isto é,
R$3100?
Por que
não basear a cota por renda familiar, pelo menos, na realidade de cada unidade
da federação, com base em pesquisas do IBGE, do IPEA ou do DIEESE?
Afinal, não é assim que assim que
a nova legislação aplica as cotas étnico-raciais? As vagas em cursos técnicos e
superiores de graduação devem ser reservadas na proporção do percentual de
pretos, pardos e indígenas autodeclarados no último Censo do IBGE, no estado em
que se situa a oferta da universidade ou instituto federal.
E por falar em cotas
étnico-raciais, não dá para partir do pressuposto de que elas são
consensualmente entendidas e defendidas... muito pelo contrário!
Muitos são os que defendem que se
há cotas para estudantes de família de baixa renda, os pretos e pardos, por
exemplo, já estão ali incluídos. Eu mesmo pensava assim... Mas será?
Se analisarmos os dados relativos às pessoas de cor preta e parda quando o tema é analfabetismo, por exemplo, ainda de acordo com o IBGE, mais de 13% da população de pretos e de pardos são analfabetos contra um índice de menos de 6% para a população de cor branca.
Se analisarmos os dados relativos às pessoas de cor preta e parda quando o tema é analfabetismo, por exemplo, ainda de acordo com o IBGE, mais de 13% da população de pretos e de pardos são analfabetos contra um índice de menos de 6% para a população de cor branca.
A média de anos de estudo é outra
maneira de se avaliar o acesso à educação e as consequentes oportunidades de
mobilidade social para brancos e negros. E, nesse caso, o IBGE aponta que a
população branca de 15 anos ou mais tem, em média, 8,4 anos de estudo, enquanto
pretos e pardos passaram apenas 6,7 anos na escola. Nessa mesma linha,
enquanto 62,6% dos estudantes brancos chegaram ao ensino
superior de graduação em 2009, apenas 28,2% dos que se declaram pretos e pardos
conseguiram chegar até essa etapa do percurso escolar.
Essa desigualdade ainda é reflexo
da construção histórica de uma sociedade que deixou de ser escravagista, mas
não criou, à época, condições de inclusão educacional, geração de emprego e
renda para os pretos que deixaram de ser escravos. Com isso, seus filhos
nasceram “livres”, mas não tiveram acesso, por preconceito, discriminação ou
por impedimento, às escolas. E quando passaram a ter acesso, os empregos que
lhes rendiam eram subempregos. Foi assim com os filhos dos filhos, que, muitas
vezes, já nem tinham mais a cor preta; eram pardos ou “brancos”, pois seu pai
ou mãe eram brancos, mas continuavam e continuam negros, vítimas de
preconceito, da discriminação e com menos chances do que os realmente brancos
de estudar e conseguir bons empregos.
E, mesmo quando concluem seus
estudos na educação básica, será que os negros – ainda hoje – têm as mesmas chances
que um branco para conseguir um emprego? Alguém se arriscaria a afirmar que, no
Brasil, uma pessoa de cor preta, pobre, com o ensino médio completo, tem as
mesmas chances de uma pessoa de cor branca, pobre, com o ensino médio completo
durante uma entrevista de emprego?
Alguns podem dizer que "sim"... que o preconceito
e a discriminação são coisas do passado. “Eu não sou preconceituoso!”... Quase
ninguém “é”, não é mesmo?
Uma vez li uma pesquisa do Núcleode Opinião Pública (NOP) da Fundação Perseu Abramo (FPA), publicada em 2004,
que questionava se a queda do preconceito racial era retórica ou real. Em detrimento
do fato de 96% dos entrevistados, ao ser questionado diretamente, ter declarado
não ter preconceito de cor, 75% deles apresentou algum tipo de preconceito
étnico-racial quando os pesquisadores abordaram a questão de forma indireta. A
pesquisa constatou que houve queda em relação ao uma pesquisa do NOP da década
de 90. Mas o índice de 2004 ainda assusta. Será que esses dados mudaram significativamente
de lá para cá? Tenho minhas dúvidas...
A minha questão quanto às cotas do governo federal para pretos, pardos e indígenas recai, sobretudo, sobre as cotas para essa parcela da população com renda familiar superior a 1,5 salário mínimo. Se já fizeram a travessia para um patamar sócio-econômico mais digno, não vejo sentido em reservar vagas para eles.
A minha questão quanto às cotas do governo federal para pretos, pardos e indígenas recai, sobretudo, sobre as cotas para essa parcela da população com renda familiar superior a 1,5 salário mínimo. Se já fizeram a travessia para um patamar sócio-econômico mais digno, não vejo sentido em reservar vagas para eles.
No que se refere aos indígenas, fora a ínfima parcela destes que também fizeram a tal travessia, o
consenso quanto à necessidade das cotas se faz novamente. Depois de dizimados
aos milhões, os que ainda resistem em suas aldeias ou os que migram para a
cidade enfrentam tantas dificuldades linguísticas, culturais e sócio-econômicas
que só não são maiores que a famigerada dívida histórica que o Brasil tem com
eles pelo extermínio de seus/nossos antepassados.
A principal crítica às cotas étnico-raciais refere-se à
forma como a etnia é auferida – autodeclaração. Mas essa discussão não leva a
lugar algum, pois não existe uma forma viável para se avaliar fenotípica e
geneticamente se uma pessoa é preta ou parda... até porque a questão da
identidade está intimamente ligada ao pertencimento étnico.
Desse modo, as cotas de acesso à
educação profissional e superior ainda
são essenciais, não como solução definitiva, mas como medida provisória de
transição!
Elas representam a tentativa de superação do paradigma da seleção, da concorrência e da exclusão reinante em muitos processos seletivos e vestibulares até pouco tempo pelo paradigma do acesso e da inclusão nos processos de ingresso discente de universidades e institutos federais.
Elas representam a tentativa de superação do paradigma da seleção, da concorrência e da exclusão reinante em muitos processos seletivos e vestibulares até pouco tempo pelo paradigma do acesso e da inclusão nos processos de ingresso discente de universidades e institutos federais.
Mas será que, diante da
iniciativa de se criar uma política afirmativa única e nacional para o acesso
às universidades e institutos federais, não caberia priorizar e instituir outros
tipos de cotas?
Não caberia instituir cotas para
os Portadores de Necessidades Especiais, que enfrentam, muitas vezes, torturantes
dificuldades físicas e de acessibilidade, psicológicas e sociais para estudar
alguns anos de sua vida e que já são cotistas em concursos públicos?
Não caberia instituir cotas para
mulheres em cursos técnicos do eixo tecnológico de Controle e Processos
Industriais ou em cursos de engenharia, tradicional e culturalmente,
frequentados por homens?
Não caberia instituir cotas para estudantes
trabalhadores, sobretudo na Educação Profissional e Tecnológica, visto que
estes não têm o mesmo tempo e espaço privilegiados para estudar e preparar-se
para os processos de ingresso?
Com esses questionamentos, chamo
a atenção para o fato de que qualquer processo de ingresso de estudantes em
universidades e instituições federais de educação profissional acaba sendo, de
uma forma ou de outra, um tanto quanto injusto, pois geralmente deixa pessoas
de fora. O número de vagas é, na maioria das vezes, menor que a quantidade de
candidatos. E aí, está instaurada a seleção.
As cotas, por mais abrangentes
que se constituam, sempre serão um assunto polêmico, pois também acabam
deixando uma ou outra parcela da população de fora, pois não podem ser aplicadas sobre 100% das
vagas dos cursos técnicos ou superiores, pois o acesso à educação, no Brasil,
deve ser universal. Todos, inclusive, os que tiveram condições de estudar em
escolas particulares, têm o direito de estudar numa universidade pública ou num
instituto federal.
Em meio a tudo isso, há de se
refletir que a reserva de vagas não é a cura para a doença. Deve ser encarada
apenas como um anestésico para os sintomas.
Portanto, é preciso ir além! É
preciso, de fato, acelerar o tempo de transformação da sociedade e de
construção de uma democracia plena e total – não confundir com totalitária –
uma sociedade justa e sem pobreza, com uma distribuição de renda mais uniforme e
condições de vida dignas para todos; uma sociedade verdadeiramente democrática,
em que, nas palavras de Mário Quintana, todos tenham “o mesmo ponto de
partida”.
Como quem acredita que essa
mudança está sendo trilhada, o governo federal compromete-se a avaliar e
revisar o que ele chama de “programa especial para o acesso” às instituições
federais de ensino superior e técnico daqui a 10 anos, podendo alterá-lo,
expandi-lo, reduzi-lo ou até suspendê-lo.
Mas será que até lá, realmente, teremos conseguido instaurar um novo projeto de sociedade que não precise
mais de cotas?