Como acredito, de fato, que
podemos (re)construir saberes e opiniões a partir do diálogo, gosto sempre de
ouvir os argumentos e as concepções de quem pensa diferente de mim. Quem sabe
assim, não vejo algo que não estava vendo, percebendo ou compreendendo.
Então, vamos lá... Algumas
pessoas andam dizendo por aí que não veem nada demais nas últimas declarações de
Marco Feliciano, deputado federal do PSC-SP e atual
presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados,
acusado por milhares de pessoas nas redes sociais e em manifestações públicas de homofobia, racismo e até discriminação contra a mulher.
Não estou me referindo a algumas
pessoas, geralmente da mesma religião que Feliciano, que não veem nada demais
nas suas ideias, porque concordam com o pastor ou porque repetem tudo que seus líderes
religiosos dizem. Com essas pessoas, preocupe-me também, mas é muito mais
difícil estabelecer qualquer diálogo racional com elas.
Por isso, estou dirigindo-me aos
outros, evangélicos ou não, que não confundem dogmas e doutrinas religiosas com
desrespeito aos direitos humanos e sociais. Estes, em geral, têm dito que até
concordam que Feliciano não deveria estar presidindo a CDHM, que ele tem falado
“tolices”, mas também têm dito que todos esses protestos virtuais e presenciais
contra o deputado são falaciosos, exagerados, mal intencionados, fruto de
intolerância religiosa por parte das minorias que protestam.
Uma das opiniões que mais me
provocou incômodo foi a do jornalista Reinaldo Azevedo, em seu blogue na Veja Online, o qual não havia lido até então, mas resolvi fazê-lo depois que
uma colega jornalista recomendou dar uma olhada em tal postagem. Para além do
mal estar que o texto me causou, as palavras de Reinaldo serviram-me para
refletir sobre o assunto e para escrever estas linhas. Como não quero que
interrompam esta leitura, destaquei as falas do blogueiro que mais me chamaram
a atenção.
Mesmo com a indignação que o
texto de Reinaldo Azevedo provocou-me de súbito, coloquei-me a refletir,
refletir e refletir, especialmente devido àquela tentativa de estar sempre
aberto a outras opiniões. Novamente, conferi, apurei e analisei os famigerados
comentários do deputado Marco Feliciano para ver se tinha lido algo errado, se
realmente eu estava precipitando-me, exagerando ou sendo intolerante. Para quem
não se lembra bem dos tais comentários ou deixou de ler algum deles, também fiz
uma coletânea das principais pérolas discursivas do parlamentar para que esta
conversa não saia daqui por enquanto.
Ora, de que se tratam tais
falácias, então, senão de algo contra o qual devemos protestar?! Tratam-se apenas de ignorância, tolice ou incompetência teológica na sua interpretação
bíblica?! Afinal, Feliciano pode, mesmo, dizer o que quiser sobre Gênesis e sobre
os africanos?! Pode, sim. Tudo em nome da tão badalada e mal invocada liberdade
de expressão, não é?
Ok... Ele pode dizer, sim, tudo
que quiser sobre africanos, homossexuais, mulheres, deficientes, quilombolas e
outros grupos minoritários ou majoritários que politicamente representa, mas
também deve arcar com as consequências de tudo que tiver dito ou vier a dizer.
Podemos até admitir que o que ele
disse sobre os africanos não foi RACISMO, dissimulando o fato de que a etnia
negra é absolutamente majoritária no continente africano. Ainda assim, suas
colocações continuam sendo afirmações de PRECONCEITO e de DISCRIMINAÇÃO. E isso
também é abominável e criminoso!
Denegrir a imagem de milhões de
pessoas em função do continente que habitam?! Aquilo não foi apenas ignorância ou tolice. Aquilo foi discriminação, crime
de acordo com a legislação brasileira. E, no Brasil, ninguém pode alegar desconhecimento
da lei com a finalidade de
descumpri-la. Por menos, a Justiça Federal de São Paulo condenou a estudante dedireito Mayara Petruso depois suas afirmações preconceituosas e discriminatóriascontra os nordestinos, na época da eleição da presidenta Dilma Rousseff.
O problema mais grave da
afirmação de Feliciano sobre os africanos é que ele explica e justifica doenças
como Ebola e Aids, bem como a fome e a miséria espalhadas pelo África a partir
de uma questão religiosa, de uma maldição do paganismo, do ocultismo. Na
verdade, as doenças e a situação de pobreza que assolam o continente africano
são uma questão histórica, social, política e econômica.
Nem mesmo quem acredita em Deus pode responsabilizá-lo pelas mazelas econômicas e pelos problemas de saúde pública da África, desresponsabilizando os colonizadores e escravagistas que, historicamente, exploraram e esgotaram o continente, assim como o sistema econômico vigente e os governantes que não têm se comprometido suficientemente para prover condições de vida dignas para a população africana.
Em se culpabilizando Deus,
assumimos, ingênua e irresponsavelmente, que os problemas da África não têm
solução terrena. Mas eles têm, sim!
A África poderia obter mais
recursos se houvesse mais investimento e profissionalização de sua
agricultura... A África tem um enorme potencial de recursos hídricos não
aproveitados. A África tem recursos minerais abundantes, que ainda são
explorados por multinacionais que enviam a maior parte dos rendimentos para o
exterior. Ou seja, é uma questão complexa, mas que perpassa interesses políticos
e econômicos; não divinos.
Quanto a falar de paganismo e
ocultismo... Isso é mais uma demonstração de que o preconceito antirreligioso
está do lado do deputado e não de quem protesta contra ele! É preciso ter cuidado... Hitler,
num discurso de 1936, também usou “o mesmo Deus de Feliciano” para justificar o
extermínio de milhões de judeus na Alemanha, dizendo: “acredito hoje que estou
agindo de acordo com o Criador Todo-Poderoso. Ao repelir os judeus, estou lutando
pelo trabalho do Senhor”.
Quanto às acusações de homofobia,
caro Reinaldo, Feliciano não é homofóbico só porque é contra o casamento gay ou
contra a lei que propõe criminalizar a homofobia. Diz-se, com toda a certeza,
que ele é homofóbico e, portanto, preconceituoso, porque ele teve a desfaçatez
de agredir os homossexuais por meio de atos discriminatórios quando afirmou que
a “podridão dos sentimentos dos homoafetivos” leva ao ódio, ao crime e à
rejeição, que a “união homossexual não é normal”, que o “o reto não foi feito
para ser penetrado” e que “a Aids é o câncer gay”.
É preciso explicar o porquê de tais afirmações serem agressivas, infundadas e discriminatórias? Talvez seja... Primeiro
digo: não é a podridão dos sentimentos dos homoafetivos que levam ao ódio, ao
crime e à rejeição, mas a podridão dos sentimentos, dos pensamentos e das ações
dos que sentem ódio, cometem crimes e rejeitam os homossexuais é que levam aos
piores dos cenários.
Ainda nesse assunto, quem foi que
disse que o NORMAL é homem gostar de mulher e mulher gostar de homem? O ser
humano! É o ser humano quem define, ao longo da história e de acordo com sua
cultura, o que é normal, o que é norma, regra e lei. Como é ele quem diz e
define isso, ele também pode desdizer e redefinir. Ocorre que algumas normas
são ditas tantas vezes e há tanto tempo que não refletimos que elas foram construídas
ou impostas por nós mesmos.
Sempre me questionei: se você não
está interessado afetiva ou sexualmente numa pessoa, qual a importância da orientação
sexual ou das práticas sexuais dessa pessoa para sua vida? Será que o fato de
uma mulher gostar e relacionar-se com um homem faz dela uma mulher boa,
inteligente, solidária ou justa a priori? Será que um homem que gosta de mulher
é, sem dúvida, um homem ideal? Será que o fato de um ser humano ser homossexual
garante que ele ou ela seja uma pessoa de boa índole? Não! Mas também não o
faz, infalivelmente, assassino, ignorante, egoísta, ladrão, pedófilo,
estuprador, mentiroso...
Como nossa questão não é justificar
a homossexualidade ou a heterossexualidade, ou ainda provar que uma é certa e a
outra, errada, vou finalizar o tema por aqui, e, se quiserem aprofundar-se
mais, leiam o que escreve o professor e pesquisador, Alípio de Sousa Filho. Afinal, o câncer da humanidade é a ignorância!
E por falar em ignorância, o
parlamentar, que não havia pensado até então em presidir a Comissão de Direitos
Humanos e Minorias – talvez por ter outros interesses e por não se sentir,
politicamente, acometido pelas questões humanitárias e minoritárias – teve mais
uma de suas falas preconceituosas publicitadas. Desta vez, as vítimas foram as
mulheres.
Deputado, quando você apenas ESTIMULA as
mulheres a terem os mesmos direitos que os homens, você não está fazendo nada! O
que você, qualquer político, qualquer cidadão ou qualquer ser humano têm que
fazer é GARANTIR que toda mulher tenha os mesmos direitos e oportunidades que
os homens! Até porque, numa sociedade em que a anatomia humana não significa
quase nada diante do conhecimento, da informação, das tecnologias, da ciência,
do amor, da civilidade, dos direitos humanos e sociais, não há espaço para
qualquer manifestação ou ação relativas a uma inverídica inferioridade da mulher em
relação ao homem ou deste em relação àquela.
Quanto ao fato de ser mãe, a
mulher contemporânea pode ser tão mãe quanto os pais têm sido pais até os dias
de hoje: trabalhando fora de casa, construindo uma vida profissional e social. E
nem me venham com aquele discurso chauvinista e ultrapassado sobre o papel
preponderante da mulher na criação de um filho. A única coisa que a mulher faz
que o homem não pode fazer é dar a luz e tirar leite dos peitos, pois, de
resto, somos totalmente capazes de dar conta das demais atividades. Nenhum
dispositivo biológico fez os homens inferiores às mulheres na execução de
atividades como trocar fraldas, fazer mamadeira, dar banho em filhos, passear
ou brincar com eles, passar roupa, cozinhar, educar, cuidar do lar...
E tem mais: ter um filho não tem
nada a ver com vocação divina ou biológica! Não há qualquer monstruosidade,
anormalidade, anomalia genética ou relação com homossexualidade no fato de uma
mulher não querer ser mãe. Ainda bem que há mulheres que,
diante da ausência de “vocação” materna, não se sentem culpadas, pois sabem que,
além de muitas outras mães e pais existirem para procriar e povoar o planeta, já
há tanta criança no mundo sofrendo – com pais e sem pais -- para colocar uma a
mais só para satisfazer os outros ou para corroborar com as mentiras históricas
de que toda mulher nasceu para ser mãe e de que todo casal tem que gerar uma
criança.
Por tudo isso, quando leio ou
escuto alguém questionando onde estão os protestos contra outros deputados
enrolados com a Justiça ou insistindo na versão de que os protestos contra
Feliciano são de cunho antirreligioso, não consigo manter-me inabalado ou
paciente.
Essas pessoas não
viram os protestos contra Renan Calheiros? Os protestos dos grevistas federais
contra o governo federal em 2012? Os protestos contra os políticos do
mensalão? Contra a privataria tucana? Talvez não tenham visto... Talvez
estejamos protestando pouco...
Se, pretensamente, dizem que nas
ruas, protestando contra Feliciano, estão, além de gays, militantes do PT, do
PCdoB, do PSOL, pergunto: por que os outros não estão protestando também? Na
verdade, até estão. Já vi várias manifestações em minhas redes sociais de colegas
e amigos, heterossexuais, cristãos, ateus, não filiados a partidos políticos e
até afiliados e simpatizantes de partidos de direita.
Porém, possivelmente, ainda não
estejamos sendo vistos ou compreendidos em nossa totalidade e complexidade, por
sermos poucos, por protestarmos pouco... De certo, nesse ponto, Reinaldo tem razão.
Em muitos aspectos, contudo, não
concordo com ele. Não concordo, por exemplo, com o ar de conformismo
que o jornalista atribui ao fato de que sociedade, POR BEM, restringe direitos
a determinados grupos. Todo direito que a sociedade julgar legítimo e que houver
sido vilipendiado POR MAL e em atenção a interesses que não os do povo, deve,
sim, ser reivindicado por meio de protestos e mobilizações sociais. De modo
análogo, não acredito que o barulho que certos grupos fazem são, em geral,
inversamente proporcional ao seu real tamanho e importância na sociedade.
Pelo contrário, aqueles que fazem
barulho, que lutam, protestam, pelo menos, não se escondem, têm coragem para lutar
pelo que acreditam e, por isso, têm, sim, grande importância social. Se esses
protestos forem a favor da igualdade humana, da justiça social, do bem comum e
da democracia, aí, sim, sem temor de ser acusado de piegas ou esquerdista,
ganham ainda mais importância para mim e para a sociedade.
Por isso, pessoas que fazem
barulho ou que querem fazer barulho, vamos mostrar nosso real tamanho, nossa
real importância para a sociedade e recuperar todos os nossos direitos,
independente do que digam, mesmo que isso pareça impossível e cansativo. Vamos
protestar! Vamos continuar protestando! Vamos ser protestantes de verdade!
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